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segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O desafio de estar disponível para todos



Todos querem ter acesso às novas tecnologias, mas as empresas brasileiras ainda estão atrasadas quando o desafio é tornar o uso de celulares e computadores uma realidade para idosos ou pessoas com algum tipo de deficiência

Patricia Knebel

STOCKPHOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Consultar o nível de bateria na tela do celular, identificar as teclas corretas para enviar um torpedo ou ler um texto na internet são atividades corriqueiras e bastante simples para a maioria das pessoas. Aliás, são atos tão automatizados que dificilmente alguém se dá conta de que está fazendo isso.
Você já parou para pensar, então, como uma pessoa que tenha alguma dificuldade de visão, seja pela idade ou por alguma deficiência, faz para saber se o celular não vai deixá-la na mão por falta de bateria? Nunca? Pois a maioria das empresas brasileiras também não.
Quando se fala em produtos de tecnologia, então, o que se espera é que essa indústria utilize justamente aquilo que mais a caracteriza, como a capacidade inovadora e empreendedora, para conseguir desenvolver produtos que possam atingir o maior número possível de pessoas. Ainda assim, consumidores interessados em novidades e geralmente com condições financeiras de investir nisso enfrentam dificuldades para se inserir e usar de forma plena os dispositivos como computadores, câmeras digitais e celulares. “O mercado de tecnologia brasileiro não investe em soluções voltadas para o público da terceira idade”, exemplifica Mercedes Sanchez, especialista em Usabilidade.
Em outros países, esse movimento já está mais avançado. Na Europa, a operadora Vodafone lançou, há cerca de cinco anos, um telefone celular para a terceira idade. O aparelho tem apenas as funcionalidades básicas, permitindo que as pessoas falem e mandem mensagens, e possui teclas com números maiores. “É um aparelho simples e extremamente acessível para quem tem dificuldade de leitura. Até porque dificilmente um idoso vai ter interesse em jogar ou acessar e-mails pelo aparelho”, comenta Mercedes.
No Brasil, a ZTE lançou em outubro de 2009 o aparelho S302, voltado para esse público. A procura, porém, não foi a esperada e a empresa decidiu tirar o produto do mercado. Já a Samsung se prepara para lançar no primeiro semestre de 2012 o C3520, seu primeiro celular voltado para os idosos.
O dispositivo foi todo pensado para esse perfil de consumidor, a começar pelo fato de ser flip-up, ou seja, basta o usuário abrir para falar. O C3520 possui teclas maiores que as convencionais, o que facilitará a digitação, e o visor tem letras maiores. “Será um aparelho sem complexidade. Até porque visa a atender uma parcela da população que não cresceu com cultura digital”, comenta o gerente de produto da Samsung, Ricardo Araujo. Segundo ele, hoje existe uma demanda grande  para esse tipo de produto, mas isso não significa que exija das empresas que irão atuar nesse nicho uma diversificação grande de portfólio.
Para o gerente de inovação e design do GAD, Fabiano Pottes, é um erro estratégico da indústria brasileira não explorar como deveria as oportunidades de negócios voltadas para a terceira idade. “Desenvolver soluções adaptadas para esse perfil de público não é uma tendência, é uma necessidade”, defende. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) comprovam isso. O número de idosos na população brasileira chegou a 21 milhões em 2009. Até 2050, 30% dos brasileiros terão 60 anos ou mais. O que falta, segundo especialistas em usabilidade, é as empresas pensarem o design levando em consideração as diferenças. Já das indústrias o que se espera é que possam trabalhar melhor a flexibilidade da produção. “Existe um movimento de revisão de todos esses conceitos e que, em alguns anos, deve trazer para o mercado soluções mais flexíveis, atendendo as necessidades do maior número possível de pessoas”, acredita Pottes.
A mesma questão pode ser estendida para as demandas que surgem por tecnologia das pessoas com algum tipo de deficiência que, segundo o IBGE, são cerca de 45 milhões no País. “Existe uma gama grande de deficiências e isso ajuda a explicar a dificuldade de se desenvolver em tecnologias que estejam acessíveis para 100% da população. Mas avanços estão acontecendo”, observa o pesquisador em Usabilidade do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), Everton Martins de Menezes. Desses 45 milhões, 35 milhões são deficientes visuais.

Evolução garante avanços importantes

A boa notícia é que a evolução tecnológica já garante avanços impensáveis até anos atrás. Para atender às necessidades dos deficientes auditivos, é possível incorporar libras aos sistemas computacionais. No celular, além das teclas maiores, as empresas podem trabalhar com soluções que reduzam a velocidade da voz, para que os indivíduos consigam entender melhor o que está sendo dito.
Mais uma vez, transformar isso tudo em realidade depende antes de uma reflexão sobre essas singularidades. Assim, se tiverem a percepção de que uma pessoa com deficiência visual não vai poder usar o mouse e, sim, apenas o teclado, os fabricantes de computadores poderão pensar em formas de adaptá-lo, bem como desenvolver leitores de tela cada vez mais modernos.
“O desafio não é atender especificamente a um público, mas, sim, fazer um desenvolvimento universal, que todos consigam usar, independentemente de terem algum tipo de deficiência”, comenta Luciano Maia Lemos, gerente de Soluções para Educação e Inclusão Digital do CPqD. “Mas esse trabalho só será bem-sucedido se as empresas procurarem entender as necessidades dos idosos e dos deficientes visuais ou auditivos”, acrescenta.

Autonomia é um dos principais desafios

Com o objetivo de criar soluções voltadas para a inclusão digital de pessoas com baixo nível de letramento, idosos, deficientes auditivos e visuais com dificuldade em interagir com o computador, o CPqD realizou de 2005 a 2009 o STID. A iniciativa teve financiamento do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel), do Ministério das Comunicações.
Foram desenvolvidas duas aplicações de governo eletrônico: o Inclua Saúde, que permite marcar consultas médicas por meio do computador ligado à internet, e Previdência Fácil, para consultas sobre aposentadoria. Dois telecentros no interior do estado de São Paulo, nas cidades de Bastos e Santo Antônio de Posse, permitem experiências com as soluções desenvolvidas. Na solução de saúde, um aplicativo permite o agendamento de consulta médica nos próprios telecentros, através dos computadores. O cadastro prévio dos usuários possibilitou que a empresa fizesse a adaptação do sistema para os perfis identificados.
Ao final, foram criados modelos com interfaces para deficientes visuais e auditivos; idosos e para pessoas com baixo letramento ou analfabetas. “É imprescindível que um serviço de governo eletrônico seja abrangente e consiga atender pessoas de diversas classes sociais, com deficiência ou não”, diz Lemos.
O CPqD trabalhou com o conceito de “personas” no STID, que é apresentar na interface do computador ícones com que fazem parte da vida cotidiana das pessoas, servindo como referência para um entendimento mais fácil.
Na prática, isso significa colocar a especialidade do médico de cada pessoa disponível no serviço web, facilitando a identificação. Para os idosos ou indivíduos com alguma dificuldade visual, o soft-ware criado permite o ajuste do tamanho e do contraste da tela e da fonte usada nos textos. Antes de projetar o calendário que ficaria disponível para as marcações das consultas, a empresa identificou que os analfabetos tinham dificuldade para compreender a hora no relógio digital. “A maioria bate o olho nos ponteiros e sabe a hora, então, disponibilizamos também a opção analógica”, observa Everton Martins de Menezes, pesquisador em usabilidade do CPqD.

Uma terceira opção foi criada para quem, mesmo assim, não consegue identificar a hora: ao passar o mouse em cima dos horários, o sistema lê a informação. Para permitir que os deficientes visuais consigam compreender tudo que está na tela, foi desenvolvida uma interface totalmente navegável pelo teclado, eliminado a necessidade do uso do mouse. O STID recebeu o Prêmio FRIDA/eLAC 2010, concedido às iniciativas de pesquisa e inovação que mais têm contribuído para o desenvolvimento da Sociedade da Informação na América Latina e Caribe.

Software é aliado para criar soluções adaptadas

Quando o assunto é adaptar os produtos tecnológicos a diferentes perfis de consumidores, a área de softwares é uma das principais aliadas. Os projetos de interface humana e computação crescem no Brasil e o desenvolvimento de programas específicos pode resolver grande parte dos problemas.
Dentro dessa perspectiva, um fabricante de celular não precisará desenvolver fisicamente um smartphone que tenha teclas maiores para oferecer maior conforto aos idosos, por exemplo. Basta criar um software para os smartphones que simule um display diferente, que tenha um teclado maior que o convencional. O hardware, ou o aparelho em si, continua igual. O que se adapta é o sistema.
Nessa área de telefonia móvel, o CPqD está desenvolvendo o projeto Voz Móvel, cujo desafio é melhorar o uso dos smartphones pelos deficientes visuais. “Existe uma série de funcionalidades dos telefones que são intuitivas para a maioria de nós, mas que se tornam uma barreira para as pessoas com dificuldades visuais”, observa Menezes.
É o caso de verificar informações importantes que estão no visor do celular. A maioria dos usuários olha para a tela e vê o nível da bateria, se recebeu mensagens de voz ou se o sinal está completo. Já o deficiente visual precisar “ouvir”.
Para resolver isso, o projeto do Voz Móvel prevê o desenvolvimento de uma camada de software que funcionará como uma nova interface entre essas funcionalidades básicas e os usuários com deficiência visual. O trabalho envolve a criação de um sistema de síntese de voz e a adaptação do sintetizador de voz do CPqD para as plataformas móveis, com menor poder de processamento e de armazenamento, como é o caso dos dispositivos celulares.
Segundo Menezes, um dos grandes desafios é desenvolver uma técnica de compressão dos sinais de fala para que seu armazenamento e execução tenham bom desempenho, sem atrasos e perda de qualidade da fala.
Esse é um trabalho de pesquisa do CPqD, que será conduzido ao longo de 2012 e ainda não tem nenhuma parceria com a indústria para a sua fabricação. A empresa trabalha em conjunto com o Centro de Prevenção a Cegueira da cidade de Americana (SP). “Esse tipo de desenvolvimento exige o modelo de design participativo. Precisamos interagir com os deficientes visuais e entender que tipo de funcionalidade irá atendê-los melhor”, comenta o gestor.

‘Meu disco rígido ainda está bom’

Nelma, 79 anos, está sempre conectada à família e aos amigos, seja no celular ou no computador.
ARQUIVO PESSOAL NELMA FRITCH/DIVULGAÇÃO/JC
Nelma Eronita Fritsch, 79 anos, mora em Estrela (RS) e é um exemplo de que o desejo pela tecnologia não tem idade. Ela está sempre conectada aos amigos e familiares através do celular e do computador. Na internet, lembra que já recebeu convites para participar de diversas redes sociais, mas escolheu o Facebook como a preferida. “Meus netos me chamaram, fiquei curiosa e aceitei. Hoje essa é uma das minhas formas de me comunicar com o mundo e ficar sabendo dos últimos acontecimentos”, revela.

Acessibilidade pode ser implantada em sites

Outro desafio para o Brasil é trabalhar a questão da acessibilidade nos sites de internet. A pesquisa “Dimensões e características da Web brasileira: um estudo do gov.br”, realizada neste ano pelo Comitê Gestor da Internet (CGI), revelou que apenas 2% de páginas dos sites governamentais estão dentro dos padrões de acessibilidade do World Wide Web Consortium (W3C).
“Não restam dúvidas de que precisamos fazer no Brasil um trabalho grande de conscientização de gestores e desenvolvedores para essa questão da acessibilidade”, diz o projetista web do escritório brasileiro do W3C, Reinaldo Ferraz.
Existem diretrizes internacionais de acessibilidade publicadas pelo W3C e que, quando seguidas, beneficiam o acesso à web de muitas pessoas com deficiência. “Os desenvolvedores de sites não são obrigados a isso, mas basta se informarem e fazerem pequenas modificações nos códigos da documentação HTML para ajudar e muito na questão da acessibilidade”, diz.
Se isso for feito, torna-se possível descrever uma imagem para quem tem essa deficiência através de um software que lê o HTML e faz a codificação. Na medida em que são criados atributos para uma foto, as pessoas conseguem identificá-la. O mesmo vale para a navegação e leitura das notícias. O software leitor de tela vai identificando os cabeçalhos do site na medida em que o usuário pressiona a tecla H.
Para tentar incentivar novas iniciativas nessa área, o escritório brasileiro do W3C lançou o prêmio Todos@Web - Prêmio Nacional de Acessibilidade na Web, que tem como meta contemplar pessoas, organizações e iniciativas que ofereceram contribuições significativas em prol do acesso de pessoas com deficiências na web.
“Se queremos uma web verdadeiramente para todos, precisamos torná-la realmente acessível, sem barreiras”, diz Ferraz. As inscrições para o prêmio vão até o dia 31 de março e podem ser feitas no site http://premio.w3c.br.
Da mesma forma, alguns cuidados tomados ao criar um site podem beneficiar, e muito, os idosos. Mas os desenvolvedores precisam estar atentos. A especialista em usabilidade Mercedes Sanchez diz que hoje na internet alguns sites permitem que as pessoas aumentem o tamanho da letra, mas muitas vezes fazem isso de forma incompleta. Assim, o usuário consegue usar esses recursos na página inicial do site, mas, à medida que ele clica nos links, essa funcionalidade passa a não estar mais disponível.

Outro problema comum nos layouts atuais é o abuso da cor cinza nas letras, o que complica a leitura na tela do computador. “Informações importantes estão sendo colocadas nessa tonalidade, o que dificulta muito a leitura pelos idosos e para as outras pessoas com alguma dificuldade de visão”, diz.
O trabalho que se tem ainda é grande, mas as novas gerações vêm demonstrando preocupação com esse tema, o que é positivo. “Os nossos alunos estão percebendo que existe essa demanda e, mais do que isso, que não adianta criar produtos específicos para a terceira idade, mas que sejam desinteressantes do ponto de vista do design”, diz o coordenador do curso de Design de Produto da Unisinos, Roberto Faller.

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